Não sei exatamente em que idade as crianças começam a ter noção do certo e do errado, ou de que certas situações não são normais. Quando a mina avó paterna faleceu, não compreendi a sua ausência, apenas achei estranho aquelas pessoas lá em casa e, sobretudo, os senhores que traziam uns candelabros enormes, e que mais tarde vim a perceber serem os senhores da funerária.
O que para mim começou a parecer errado era ter de cumprimentar o meu pai quando este chegava à noite em casa bêbado, com um bafo insuportável. Tanto me pareceu errado que um dia recusei-me dar-lhe o habitual beijo de boa-noite simplesmente porque:
- ele está bêbado!
Isso valeu-me o primeiro (e único, é certo) estalo por parte do meu pai. Não sei se conseguem perceber o impacto que isso teve em mim, mas na verdade, nesse dia, deixei de gostar do meu pai. É muito triste, aos cerca de 3, 4 anos percebermos que não gostamos do nosso pai e que ele nos causa repulsa. Há infelizmente situações piores e respeito-as profundamente, porque sei o que é deixar de gostar e respeitar aqueles que devemos amar incondicionalmente.
O certo é que passei a infância e a adolescência a cumprimentar o meu pai por pura obrigação, sem qualquer desejo ou prazer em fazê-lo, até que, em virtude de atrasos e aulas mais tardias lá me ia escapando.
Só mais tarde conseguir racionalizar o carinho que hoje nutro por ele, por perceber o que também fez por mim e por perceber que também ele foi fruto de uma educação diferente. Mas este meu carinho é racional, não é incondicional, pois nunca lhe perdoei o facto de colocar o vinho à frente da família. Mesmo quando lhe pedíamos para se controlar, por exemplo, no nosso aniversário, o resultado era o mesmo e a resposta:
- quando me avisam, ainda é pior!
No fundo, mesmo sabendo que somos acarinhados, nunca nos sentimos amados, pois entre nós e a porra do vinho, este ganha.
Esta situação condicionou é claro a minha relação com o álcool. Não sendo abstémia, também não sou apreciadora e abomino quem abusa dele, por exemplo, como alavanca de descontração social ou ao volante de um automóvel, pondo em causa a vida de terceiros. Não tenho paciência para bêbados. Ou melhor, a minha paciência está canalizada e esgota-se numa única pessoa, mais do que isso não sou capaz.
Viver com um bêbado não é fácil. É viver na constante incerteza de como é que entrará em casa. É ter de fazer ronda aos cafés e bares em redor. É desistir de ter tapetes no chão com medo de consequências drásticas de um tropeço. É não saber se ele entrará em casa pelo próprio pé. Ou até de dará a chave de casa a um qualquer estranho que o leve. É nunca ter a segurança de marcar um jantar de celebração com pessoas fora do núcleo familiar por vergonha. É fazer os ditos jantares com ele a dormir no sofá. É tê-lo a dormir no corredor ou no chão da sala. É nunca saber se uma ida à casa de banho resultará numa queda. É suportar as repetições, as teimosias, as tacanhices. É não conseguir falar. É vómitos e mijos. É tanta coisa. É tanta raiva.
Hoje, aos 70, as bebedeiras são menos frequentes e intensas, mas ainda subsistem. Mas aos 70 é já tarde para sentir mais do que pena e raiva, muita raiva por tanto que se perdeu por causa do vinho.
E durante toda uma vida, calquei em mim esta raiva, este inconformismo, esta descrença que generalizei para todos os homens e que acredito estar também na génese da minha incapacidade e relutância de me envolver romanticamente seja com quem for. Porque a minha percepção é de que não posso contar seja com que homem for e assim recuso-os e recuso-me também a qualquer outro tipo de sentimento(s) e de futuro(s).
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