O meu pai sempre proferiu que mais vali 10 anos alegres, que 20 tristes. Ou seja, preferia morrer cedo e bem, do que tarde e mal. Mas tal frase, vinda de um alcoólico, sempre me pareceu uma fuga à dor e aos problemas e não uma verdadeira compreensão de que a vida, em determinadas circunstâncias, já não fosse vida que valesse viver.
Quando foi diagnosticado cancro à minha mãe, nunca pensamos – embora sempre fosse uma hipótese real – que tal realmente aconteceria. A nossa negação, disfarçada pela crença na melhoria, levou até, quem sabe, a um desfecho mais rápido.
Foi conviver diariamente com a fase terminal da sua doença – embora sem essa consciência – que cimentou a minha crença de que a eutanásia, o suicídio assistido ou outra forma de morte digna devem ser um direito dos cidadãos. Acredito da criação de juntas médicas, tribunais ou outras formas de aferir – com as falhas que qualquer ser humano pode cometer -, doente a doente, das condições de vida, das fases da doença, da consciência das decisões e escolhas tomadas, etc. seja qual for(em) o(s) sistema(s) adoptado(s), acredito que o direito de escolha deve existir.
Talvez para isso deva explicar com o exemplo da minha mãe. Sempre me falhou a coragem para o dizer e por isso muito poucas pessoas o sabem, e sobretudo porque o presenciaram ou deduziram, mas que o tivesse revelado abertamente, creio que só a duas ou três pessoas.
A minha mãe desenvolveu um cancro no estômago que demorou quase um ano a ser diagnosticado, após muitos exames e hipóteses médicas. Numa primeira cirurgia, realizou-se uma gastrotomia – retirada parcial do estômago - a que se seguiram tratamentos de rádio e quimio terapia. Cerca de cinco anos depois, o cancro reincidiu e seguiu-se uma colostomia. A colostomia é a retirada de parte dos intestinos e implica a realização de um orifício na barriga por onde saem as fezes, que são recolhidas num saco que se muda regularmente.
Até esse momento, nunca me passou pela cabeça que tal procedimento existisse ou até que o corpo humano se degradasse assim, ainda em vida. Certas doenças não passavam de histórias, relatos que ouvia. Foi um choque mudar os sacos e os pensos, mas esse choque ainda viria a ser acentuado.
Os novos tratamentos de quimio, além da debilitação física, não tiveram o efeito desejado e a degradação do corpo da minha mãe continuou ao ponto de começar a vomitar as fezes.
Nunca ninguém está ou poderá estar preparado para esta realidade. Foram precisos mais de nove anos para o relatar e foi impossível conter as lágrimas ao fazê-lo.
Se me disserem que morrer assim é digno, é mentira. Ninguém merece morrer assim, nem de milhentas outras formas que se morre. Por isso, sou a favor de formas de morte digna e consciente. Para quem fica a ausência nunca é fácil, mas a memória doce pode ser uma herança única. Mas para quem parte, a paz e a minimização de dor têm de ser uma opção.
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